Padre António Vieira s.j.
Joaquim Palminha da Silva |
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Já pode ser
saciada a avidez dos estudiosos, dos apreciadores da capacidade luxuriante da
língua portuguesa e dos leitores comuns, pois a obra completa do Padre
António Vieira finalmente veio de ser editada, fruto de um trabalho de
mais de uma década, agrupando mais de 100 investigadores sob a coordenação do
Doutor Pedro Calafate e do Doutor José Eduardo Franco, director do Centro
de Literaturas Lusófonas e Europeias da Universidade de Lisboa. A ideia
desta monumental edição, cuja intenção já remonta há 200 anos, encontrou no
decurso da História vários e importantes impedimentos, não sendo menor o
anti-clericalismo de parte da classe dirigente e, desde o Marquês do Pombal, uma
animosidade anti-jesuítica muito persistente. Por fim, todo este arsenal
desmoronou-se e o papel da Companhia de Jesus na missionação católica e difusão
da língua e cultura portuguesa além-mar, acabaram por sobressair, deixando ver
claro e em profundidade o desempenho religioso, político e cultural do Padre
António Vieira numa época bastante conturbada de Portugal, quando da luta pela
sua independência face à Espanha, e pela sua afirmação como nação
europeia.
Até agora, tem
passado praticamente desapercebido quanto a publicação da obra completa do
Padre António Vieira é, a todos os títulos, um grande acontecimento
cultural !
Além do que se
conhecia em várias edições incompletas das suas Cartas e demais
escritos dispersos, publicados muitas vezes sem o cuidado necessário, foram
encontrados mais de 5.000 manuscritos inéditos que, uma vez estudados, foram
agora publicados pela primeira vez. A personalidade e obra do Padre António
Vieira estará agora mais perto de alcançar a sua real dimensão, apesar de até à
data já se terem efectuado mais de 1.000 teses de doutoramento e mestrado, sem
falar dos inúmeros seminários e conferências sobre o mais célebre padre jesuíta
português de todos os tempos. Na verdade, a copiosa obra do Padre António Vieira
e o seu manejo da língua portuguesa mereceram atenção dos nossos maiores
escritores, que o leram e estudaram confessando que o tinham por mestre, a quem
deviam muitos ensinamentos ostentados depois nas suas obras. Entre outros, foram
leitores atentos do Padre António Vieira, Camilo Castelo Branco e Fernando
Pessoa, totalmente rendido à sua escrita, chamou-lhe «imperador da língua
portuguesa». Aquilino Ribeiro confessou-se devedor de muitas lições que
a sua leitura lhe ofereceu. Já nos finais do século XX, o Prémio Nobel da
Literatura, o José Saramago português, convicto anti-clerical, numa declaração
de franqueza que só lhe ficou bem, confessou que o Padre António Vieira era sua
leitura obrigatória.
Panorâmica dos
Paços da Ribeira no século XVII (Lisboa)
António Vieira
nasceu no seio de família modesta, seus pais eram servidores do Paço Real,
moradores na Rua do Cónego, Freguesia da Sé (Lisboa). Em 1614 emigrou com os
pais para o Brasil, fixando-se na Baía. Fez os seus estudos iniciais no Colégio
dos Jesuítas, tendo entrado para a Companhia de Jesus com 15 anos de idade. Dois
anos depois fez votos de pobreza e propôs-se missionar no interior, entre as
tribos de índios e escravos negros. Assinalado pelos seus professores como
especialmente dotado para as línguas (aprendeu a língua tupi-guarani dos índios,
e o dialecto dos escravos negros, o quimbundo) e de grande ajuizar intelectual,
já em 1626 era encarregado de redigir em latim para o geral da Companhia a carta
anual da província, onde relatou as peripécias do ataque holandês à então
capital do Brasil, nos anos 1623-1624.
Em 1634, pouco
tempo após a sua ordenação como sacerdote, começou a espalhar-se a sua fama de
grande pregador. Os seus sermões procuravam divulgar qual era o sentido da luta
contra os holandeses, que pretendiam retirar da posse da coroa portuguesa todo o
Brasil, preparando assim a opinião pública para a luta e o apoio a Portugal. Em
1641 veio a Portugal, integrado numa delegação portadora da adesão do Brasil a
D. João IV. O Rei, conhecedor dos seus dotes de orador e vasta erudição,
nomeou-o seu conselheiro. O Pe. António Vieira teve então ensejo de pregar para
um escol de nobres dotados de alguma cultural, na igreja de S. Roque (Lisboa).
A oratória
sagrada era então um género muito escutado, por isso, tal como no Brasil pregou
contra a corrupção e defendeu a causa portuguesa contra a usurpação castelhana,
em Portugal sustenta a necessidade de concentrar todas as energias e recursos
nacionais na mobilização contra a Espanha, que nos guerreava, inconformada com a
nossa independência, sobretudo nas vésperas das reuniões das Cortes, em 1642.
Desempenhou missões diplomáticas, a mando do Rei, e propôs, com pleno êxito, a
fundação de uma companhia destinada a proteger da cobiça dos holandeses o
transporte de mercadorias entre o Brasil e Portugal (Pernambuco estava sob
domínio holandês). O Pe. António Vieira deslocou-se em 1646 e 1647 a Paris e a
Haia. Em último recurso, de forma a atenuar os ódios castelhanos, D. João IV
propôs o casamento do herdeiro de Reino com a princesa herdeira de Espanha e,
nesse sentido, enviou o seu conselheiro a Roma em 1650, de forma a negociar esta
proposta sob a tutela do Papa…Mas o intento malogrou-se. Todavia, conseguiu
convencer os cristãos-novos (judeus portugueses) exilados em Roma, na Holanda e
em França a investir capitais na companhia portuguesa, o que os isentava do
confisco dos bens, sediados em Portugal, pela Inquisição. Estas medidas
suscitaram-lhe ódios terríveis.
Colégio da
Companhia de Jesus em Roma, no século XVII.
Em
1652 regressou às missões do Maranhão (Brasil). À sua actividade de catequista
juntou a denúncia dos abusos dos colonos portugueses sobre as várias tribos de
índios. Obrigado a voltar a Portugal em 1661, justifica a acção da Companhia de
Jesus no interior do Brasil junto dos índios e, num sermão na capela real,
condena as arbitrariedades e atrocidades dos colonos portugueses sobre os
índios. A Inquisição, seriamente desagradada com a actividade do Pe. António
Vieira em relação aos cristãos-novos, tacha-o de hereje e obriga-o ao
recolhimento, com base num manuscrito de sua autoria, onde manifesta a crença
num «Quinto Império» e, metaforicamente, na ressurreição de D. João IV.
Devolvido à liberdade, partiu para Roma no ano de 1669. Aí se distinguiu como
pregador na língua italiana, conseguindo que a Santa Sé peça contas ao que
andava fazendo a Inquisição portuguesa, a forma como decorriam os julgamentos
dos judeus cristãos-novos e as respectivas expropriações dos seus bens. Em 1675
regressou a Lisboa, deparando-se com mudanças na Corte. Afastado da Corte e dos
negócios de Estado, enfrentou um profundo desânimo, pois nunca quis nada para si
nem se aproveitou de nenhuma situação para granjear fortuna ou posição
política.
Em 1681
regressou definitivamente ao Brasil. Com 80 anos de idade, o Pe. António Vieira
assumiu o cargo de visitador-geral das missões jesuítas no Brasil (1688) e ainda
conseguiu forças para intervir, de forma a atenuar a repressão, na revolta dos
Palmares, de negros escravos fugidos (1691). Em 1695, um cometa que foi visível
na Baía inspirou-lhe uma meditação que intitulou «Voz de Deus no Mundo, a
Portugal e à Baía», foi esta a sua derradeira presença escrita nesta
vida. O navio que trouxe ao Reino a notícia da sua morte, no Verão de 1697,
transportava ainda cartas suas.
No admirável
«Sermão da Sexagésima», o Pe. António Vieira expõe a sua concepção
da escrita e da oratória. O negativo, na qual define a oratória que se
praticava, consistia no excesso de vocabulário precioso e raro e na busca de
efeitos formais. A isto opunha o Pe. António Vieira uma linguagem chã e sóbria e
o respeito, no sermão, pelo texto escrito. No que se refere à linguagem, é
incontestável quanto ele escapa aos vícios dos cultistas, o seu
vocabulário e construção frásica são funcionais e correntios, pode dizer-se,
portento, que ele alcançou um equilíbrio raro e genial sobre a linguagem falada
e a escrita. Alguns dos seus Sermões são grandes exercícios de
subtileza.
O Pe. António
Vieira viveu os seus últimos dias no ambiente de psicose colectiva que
acompanhou a Restauração, e lhe ditou o sentimento de frustração
face a uma Nação em declínio, mas ainda lembrava da sua época de grandeza
mundial. O seu profetismo, possibilitado pela exegese alegórica da Bíblia, e que
vinha desde os primeiros tempos do cristianismo, deve seguramente explicar-se,
em grande parte, à necessidade de encontrar fontes de inspiração que levantassem
o ânimo nacional, e novamente dessem aos portugueses a crença num futuro e
benigno destino pátrio.
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