terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Um grande acontecimento cultural! 1ª edição da obra completa do Padre António Vieira s.j.

Padre António Vieira s.j.


Joaquim Palminha da Silva
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Já pode ser saciada a avidez dos estudiosos, dos apreciadores da capacidade luxuriante da língua portuguesa e dos leitores comuns, pois a obra completa do Padre António Vieira finalmente veio de ser editada, fruto de um trabalho de mais de uma década, agrupando mais de 100 investigadores sob a coordenação do Doutor Pedro Calafate e do Doutor José Eduardo Franco, director do Centro de Literaturas Lusófonas e Europeias da Universidade de Lisboa. A ideia desta monumental edição, cuja intenção já remonta há 200 anos, encontrou no decurso da História vários e importantes impedimentos, não sendo menor o anti-clericalismo de parte da classe dirigente e, desde o Marquês do Pombal, uma animosidade anti-jesuítica muito persistente. Por fim, todo este arsenal desmoronou-se e o papel da Companhia de Jesus na missionação católica e difusão da língua e cultura portuguesa além-mar, acabaram por sobressair, deixando ver claro e em profundidade o desempenho religioso, político e cultural do Padre António Vieira numa época bastante conturbada de Portugal, quando da luta pela sua independência face à Espanha, e pela sua afirmação como nação europeia.
Até agora, tem passado praticamente desapercebido quanto a publicação da obra completa do Padre António Vieira é, a todos os títulos, um grande acontecimento cultural !
Além do que se conhecia em várias edições incompletas das suas Cartas e demais escritos dispersos, publicados muitas vezes sem o cuidado necessário, foram encontrados mais de 5.000 manuscritos inéditos que, uma vez estudados, foram agora publicados pela primeira vez. A personalidade e obra do Padre António Vieira estará agora mais perto de alcançar a sua real dimensão, apesar de até à data já se terem efectuado mais de 1.000 teses de doutoramento e mestrado, sem falar dos inúmeros seminários e conferências sobre o mais célebre padre jesuíta português de todos os tempos. Na verdade, a copiosa obra do Padre António Vieira e o seu manejo da língua portuguesa mereceram atenção dos nossos maiores escritores, que o leram e estudaram confessando que o tinham por mestre, a quem deviam muitos ensinamentos ostentados depois nas suas obras. Entre outros, foram leitores atentos do Padre António Vieira, Camilo Castelo Branco e Fernando Pessoa, totalmente rendido à sua escrita, chamou-lhe «imperador da língua portuguesa». Aquilino Ribeiro confessou-se devedor de muitas lições que a sua leitura lhe ofereceu. Já nos finais do século XX, o Prémio Nobel da Literatura, o José Saramago português, convicto anti-clerical, numa declaração de franqueza que só lhe ficou bem, confessou que o Padre António Vieira era sua leitura obrigatória.


Panorâmica dos Paços da Ribeira no século XVII (Lisboa)
 
António Vieira nasceu no seio de família modesta, seus pais eram servidores do Paço Real, moradores na Rua do Cónego, Freguesia da Sé (Lisboa). Em 1614 emigrou com os pais para o Brasil, fixando-se na Baía. Fez os seus estudos iniciais no Colégio dos Jesuítas, tendo entrado para a Companhia de Jesus com 15 anos de idade. Dois anos depois fez votos de pobreza e propôs-se missionar no interior, entre as tribos de índios e escravos negros. Assinalado pelos seus professores como especialmente dotado para as línguas (aprendeu a língua tupi-guarani dos índios, e o dialecto dos escravos negros, o quimbundo) e de grande ajuizar intelectual, já em 1626 era encarregado de redigir em latim para o geral da Companhia a carta anual da província, onde relatou as peripécias do ataque holandês à então capital do Brasil, nos anos 1623-1624.
Em 1634, pouco tempo após a sua ordenação como sacerdote, começou a espalhar-se a sua fama de grande pregador. Os seus sermões procuravam divulgar qual era o sentido da luta contra os holandeses, que pretendiam retirar da posse da coroa portuguesa todo o Brasil, preparando assim a opinião pública para a luta e o apoio a Portugal. Em 1641 veio a Portugal, integrado numa delegação portadora da adesão do Brasil a D. João IV. O Rei, conhecedor dos seus dotes de orador e vasta erudição, nomeou-o seu conselheiro. O Pe. António Vieira teve então ensejo de pregar para um escol de nobres dotados de alguma cultural, na igreja de S. Roque (Lisboa).


 
A oratória sagrada era então um género muito escutado, por isso, tal como no Brasil pregou contra a corrupção e defendeu a causa portuguesa contra a usurpação castelhana, em Portugal sustenta a necessidade de concentrar todas as energias e recursos nacionais na mobilização contra a Espanha, que nos guerreava, inconformada com a nossa independência, sobretudo nas vésperas das reuniões das Cortes, em 1642. Desempenhou missões diplomáticas, a mando do Rei, e propôs, com pleno êxito, a fundação de uma companhia destinada a proteger da cobiça dos holandeses o transporte de mercadorias entre o Brasil e Portugal (Pernambuco estava sob domínio holandês). O Pe. António Vieira deslocou-se em 1646 e 1647 a Paris e a Haia. Em último recurso, de forma a atenuar os ódios castelhanos, D. João IV propôs o casamento do herdeiro de Reino com a princesa herdeira de Espanha e, nesse sentido, enviou o seu conselheiro a Roma em 1650, de forma a negociar esta proposta sob a tutela do Papa…Mas o intento malogrou-se. Todavia, conseguiu convencer os cristãos-novos (judeus portugueses) exilados em Roma, na Holanda e em França a investir capitais na companhia portuguesa, o que os isentava do confisco dos bens, sediados em Portugal, pela Inquisição. Estas medidas suscitaram-lhe ódios terríveis.


Colégio da Companhia de Jesus em Roma, no século XVII.
 
            Em 1652 regressou às missões do Maranhão (Brasil). À sua actividade de catequista juntou a denúncia dos abusos dos colonos portugueses sobre as várias tribos de índios. Obrigado a voltar a Portugal em 1661, justifica a acção da Companhia de Jesus no interior do Brasil junto dos índios e, num sermão na capela real, condena as arbitrariedades e atrocidades dos colonos portugueses sobre os índios. A Inquisição, seriamente desagradada com a actividade do Pe. António Vieira em relação aos cristãos-novos, tacha-o de hereje e obriga-o ao recolhimento, com base num manuscrito de sua autoria, onde manifesta a crença num «Quinto Império» e, metaforicamente, na ressurreição de D. João IV. Devolvido à liberdade, partiu para Roma no ano de 1669. Aí se distinguiu como pregador na língua italiana, conseguindo que a Santa Sé peça contas ao que andava fazendo a Inquisição portuguesa, a forma como decorriam os julgamentos dos judeus cristãos-novos e as respectivas expropriações dos seus bens. Em 1675 regressou a Lisboa, deparando-se com mudanças na Corte. Afastado da Corte e dos negócios de Estado, enfrentou um profundo desânimo, pois nunca quis nada para si nem se aproveitou de nenhuma situação para granjear fortuna ou posição política. 
 
Em 1681 regressou definitivamente ao Brasil. Com 80 anos de idade, o Pe. António Vieira assumiu o cargo de visitador-geral das missões jesuítas no Brasil (1688) e ainda conseguiu forças para intervir, de forma a atenuar a repressão, na revolta dos Palmares, de negros escravos fugidos (1691). Em 1695, um cometa que foi visível na Baía inspirou-lhe uma meditação que intitulou «Voz de Deus no Mundo, a Portugal e à Baía», foi esta a sua derradeira presença escrita nesta vida. O navio que trouxe ao Reino a notícia da sua morte, no Verão de 1697, transportava ainda cartas suas.
 
No admirável «Sermão da Sexagésima», o Pe. António Vieira expõe a sua concepção da escrita e da oratória. O negativo, na qual define a oratória que se praticava, consistia no excesso de vocabulário precioso e raro e na busca de efeitos formais. A isto opunha o Pe. António Vieira uma linguagem chã e sóbria e o respeito, no sermão, pelo texto escrito. No que se refere à linguagem, é incontestável quanto ele escapa aos vícios dos cultistas, o seu vocabulário e construção frásica são funcionais e correntios, pode dizer-se, portento, que ele alcançou um equilíbrio raro e genial sobre a linguagem falada e a escrita. Alguns dos seus Sermões são grandes exercícios de subtileza.
 
O Pe. António Vieira viveu os seus últimos dias no ambiente de psicose colectiva que acompanhou a Restauração, e lhe ditou o sentimento de frustração face a uma Nação em declínio, mas ainda lembrava da sua época de grandeza mundial. O seu profetismo, possibilitado pela exegese alegórica da Bíblia, e que vinha desde os primeiros tempos do cristianismo, deve seguramente explicar-se, em grande parte, à necessidade de encontrar fontes de inspiração que levantassem o ânimo nacional, e novamente dessem aos portugueses a crença num futuro e benigno destino pátrio.   

 

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