Como muitos de nós passaram por situações identicas, publicamos texto do nosso amigo Dr. Joaquim Palminha Silva, que retrara uma situação deveras curiosa.
O beijo
proibido
(como um conto)
«Sombra da
tua sombra, doce e calma,
Sou a grande
quimera da tua alma
E, sem viver,
ando a viver contigo.»
- Florbela
Espanca, de «O meu desejo»
in
Reliquiæ.
A
história que vou contar é tão verdadeira como o sol. Passou-se há cinquenta anos
e teve por palco de origem a mata do Jardim Público de Évora, e por actores um
par de namorados…
Um
dia destes, por um feliz acaso, alcancei o mais difícil: regressei à mata do
Jardim Público acompanhado dos dois ex-namorados, envelhecidos pelo tempo e,
entretanto, separados pelas circunstâncias da vida. Enquanto caminhava com os
meus amigos, batiam-me nos ouvidos as palavras da pergunta que andava a
arquitectar, desde que havíamos passado o portão do Jardim, frente ao palacete
onde está agora o «Tribunal da Relação» … Não resistindo mais, apontei um
pitoresco banco da Mata…
-
Lembram-se? Foi ali…
- É
verdade!… Foi ali!... (disse ele acabrunhado).
- Se
me lembro?! Ah!, se me lembro?! (reforçou ela).
Quantos anos tinham em 1960? Talvez quinze, não mais…
Ela
era aluna do Liceu. Filha da média burguesia de Évora. O pai engenheiro numa
empresa da cidade. Ele frequentava o curso comercial na Escola Industrial e
Comercial «Gabriel Pereira», instalada no Convento de Santa Clara, filho de
modesto funcionário público e de uma ex-empregada da «Arcada de Paris», (Praça
de Giraldo). Uma tarde faltaram às aulas…. Na mata do Jardim havia
folhas secas pelo chão, denunciando a tradicional negligência com que o espaço
era tratado pelo Município. Tinham então quinze anos e amavam-se de forma tão
natural que nenhum dos colegas, maliciosos e brejeiros, encontrava maneira de os
apontar a dedo. Ela era duma rara beleza, de todo estranha à Charneca
alentejana. Ele era parecido com um jovem poeta, dessas figuras esguias
desenhadas nos anos 40 por Júlio (dos Reis Pereira).
Passearam no Jardim de mãos dadas. O olhar no olhar, numa serena contemplação a
escorrer sentimentos de ternura. Para não darem nas vistas dirigiram-se para a
mata do Jardim. Sentaram-se naquele banco forrado de azulejos. Que a vegetação
em redor quase escondia… Depois, enternecidos acabaram por se beijar. Colaram os
lábios, escutando ao mesmo tempo o coração a resfolegar de ansiedade. Naquele
instante, o tempo parou! O céu era muito azul. O vento morno, bafejando os
verdes ramos, parecia querer avisá-los sem alarde. Ela suava um pouco, sob a
bata do Liceu, ruborizada… Ele tinha os cabelos em desalinho… Sobre as suas
cabeças caiam penetrantes aromas… Completamente absortos, nem
viram…
Súbito, uma sombra inesperada poisou-lhes sobre as cabeças unidas: - Era o
guarda municipal da mata do Jardim! Homem esquisito e de andar aleijado, quase à
sua frente, na sua farda de cotim e boné estafados. Rosto incaracterístico, onde
avultavam o mau hálito e uns laivos de saliva espumosa aos cantos da boca, como
os cães costumam. Uma voz roufenha, como que a rosnar…
«-
Soltou-se o diabo?! Agora é assim? Seus desenvergonhados! Não sabem que
isso é proibido!». Em silêncio, nenhum dos dois interrompeu o guarda,
que continuou por alguns instantes a fustigá-los com insinuações imundas,
repugnantes…
O sistema das
proibições, oleado por séculos de conservadorismo e “modernizado” pela
ditadura fascista, pôs-se em marcha e transformou, desapiedado, o beijo do par
de namorados num caso de atentado ao
pudor!
Identificados
pelo guarda do Jardim Público como alunos de dois estabelecidos de ensino
público da cidade, um dia depois foram chamados perante a autoridade escolar:
ele foi levado à presença do director da Escola Industrial e Comercial «Gabriel
Pereira»; ela conduzida até ao reitor do Liceu. As horas desse dia foram
penosas, com interrogatórios e apresentação de uma panóplia de castigos, se a
“pouca-vergonha” se repetisse!
Quantas torpezas
lhes foram ditas? O seu singelo namoro foi cercado por mentes imundas, que
tentaram parasitar os seus sentimentos, salpicando-os de lama. Uma multidão de
ladrões da alegria pavoneou-se então, vitoriosa, a cavalo na sua “moral” de
coveiros: - Era proibido beijar!
Os primeiros
dias, meses, anos… separaram-nos.
Com o passar do
tempo, tudo esqueceu a todos. Até ao dia em que, por um feliz acaso, visitei a
mata do Jardim Público com os dois... Contemplei-os, sustendo a respiração. De
repente, vi ela aproximar do rosto uma das mãos a limpar furtiva lágrima… Vi que
haviam dado as mãos… Olhá-los naquele instante, foi ver a estátua da mágoa
fitando com resignada saudade um banco de jardim. Percebi que aquele juvenil
amor havia sido feliz acaso da Natureza, desses fenómenos que duram uma vida!
Então, senti necessidade de lhes comunicar quanto foram desprevenidos namorados
em plena ditadura e, portanto, vítimas do fascismo! Tinham cometido um acto
imperdoável, ao ignorarem que era proibido beijar no Jardim
Público!
Por pudor, calei
em mim o comício e o panfleto político. Afastei-me um pouco daquele par, para
não sentir ranger a esperança despedaçada…
A este tempo a
sombra do fim-de-tarde tinha já invadido a mata do Jardim Público… À saída,
quando passei pelo abrigo do guarda municipal, acudiu-me à lembrança o outro
guarda, o aleijado a espumar aos cantos da boca. Parece que morreu contrito
(disseram-me depois) e, por isso, se habilitou a entrar no Reino… Se Deus lhe
perdoou, delator abominável de miudezas, fechemos-lhe nós também os olhos, pois
não passou de um desgraçado… E sem saber porquê, os meus olhos molharam-se: -
Fascismo nunca mais!
1 comentário:
O citado guarda era conhecido pela alcunha "pé de xarim" (não achei o significado de xarim ou charim), por ter os dois pés deformados. Ele era terrível para os namorados e não só. Julgava-se o senhor do local.
Uma certa vez eu e o amigo Gualter insultámo-lo. Depois fomos os dois e mais alguns companheiros a caminho do Rio Degebe para nadar e percebemos que o guarda nos perseguia...
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