©Joaquim Palminha
Silva
Era
uma vez Luís de Camões…
(10
de Junho de 2013)
Em torno da vida de Luís Vaz de
Camões, uma vez assente a cadeia cronológica que os investigadores académicos
sempre gostam de mencionar, apuramos que pouco se sabe de concreto sobre a vida
efectivamente
real, vivida pelo poeta.
Na verdade, à volta de certas
existências, de “feitio” acima do comum, mas de nascimento “plebeu”, adensa-se
um misterioso nevoeiro. Um mais que outro, historiadores e críticos literários,
mantém equívocos biográficos sobre o épico, contribuindo assim ora para a
confusão ora para a ficção sobre figuras, entretanto consideradas “grandes”,
uma vez transfiguradas em personagens tutelares da História de Portugal. Há
séculos que Luís de Camões faz parte desta galeria de “quadros históricos”…
Luís de Camões foi homem pobre.
Nunca teve o privilégio de ser recebido em audiência real, como chegou a
pretender Almeida Garrett (1799-1854), que o imaginou a ler Os
Lusíadas ao rei D. Sebastião. De comprovado, sabe-se que para além de
ser soldado raso da tropa ultramarina, viveu a sua existência no seio da
“meia-tigela” nacional. Isto é, viveu à margem da fidalguia, mesmo a mais
falida, misturado com turbamulta, se bem que admirado (à distância, diga-se!)
por alguma nobreza e raros amigos de boémia e aventura. Enfim, como se tornou
grande vulto depois de falecido num mísero abandono, sobretudo com a perda da
independência e a ocupação castelhana (1580-1640), com Os Lusíadas travestidos
em “bíblia” da Pátria, Luís de Camões acabou por se tornar o morto mais
importante da nossa História, naturalmente para alimento “espiritual” do vivo
orgulho nacional e mimo para a nossa memória cultural, sempre tão carenciados…
O Poder político usou-o
paulatinamente para decorar os enfaixes da sua demagogia… Os homens e mulheres
da Restauração
(século XVII) usaram a sua vida e obra com alguma legitimidade, pois tratava-se
então de levantar os ânimos à população do País, em guerra aberta pela
manutenção da independência nacional, coisa estimada pelo poeta. Porém, em
1880, a propaganda republicana fez Luís de Camões seu “militante”, durante as
festividades antimonárquicas que organizaram para comemorar o 3º centenário da
sua morte. O regime da ditadura salazarista pretendeu “filiar” Luís de Camões
no partido único (a “União Nacional”), abusando do uso do termo «lusíadas» e
vária simbologia de recorte “camoniano”, para militarizar crianças e jovens,
através de organização específica (“Mocidade Portuguesa”). A paranoia radical
(e ignorante) das hostes esquerdistas e pequeno-burguesas, logo após 25 de
Abril de 1974, chegou ao desplante de pretender “sanear” Luís de Camões e Os
Lusíadas da memória histórico-cultural da Nação, a pretexto de que a obra
do épico fazia a apologia da conquista imperialista e, portanto, colonialista, transformando
assim o “pobre” poeta num acabado “militante” da extrema-direita!
Em poucas palavras, tudo aconteceu a
Luís de Camões… depois que morreu!
Por último, o Poder de Estado organizou
a “charada” de transformar o dia do seu falecimento (10 de Junho!), acontecido
(1580) no abandono e no sofrimento, numa cerimónia de entrega de “chapinhas
condecorativas” disto e daquilo, como dizia mestre Gil Vicente, a «Todo
o Mundo e a Ninguém»!
Era uma vez Luís de Camões… - O
verdadeiro!
Surgiu este no ano de 1976,
inesperadamente, através de um códice da «divisão de manuscritos» da Biblioteca
do Congresso dos Estados Unidos da América. Manuscrito com 196 folhas
numeradas com a classificação de P-129 e o seguinte título : «ISTORIAS E DITOS
GALANTES QUE SUCEDERAÕ E SE DISSERAÕ NO PAÇO».
O investigador que descobriu o
texto, e o trabalhou para edição (Coimbra, 1980), o norte-americano Christopher
C. Lund, embora alguns se inclinem para a autoria do manuscrito pertencer a Ruy
Lourenço de Távora, levanta sérias e bem fundadas objecções a esta hipótese…
Assim, dá-o como redigido por autor anónimo, contemporâneo (século XVI)
portanto das «istorias» narradas.
Se algum investigador dos nossos
dias se mortificou a procurar Luis de Camões, o verdadeiro, e quis adaptar o
épico idolatrado a pobre personagem da época, frequentador da taberna do «Mal
Cozinhado» (no Bairro Alto, Lisboa), sem que se prejudique a aturada
paciência dos eruditos, antes pelo contrário, aqui tem um Luís de Camões na sua
mocidade ardente e jocosa, metido a fazer “versos” já com o propósito de
criticar o desconcerto do mundo, nalguns casos debaixo de alegres composições.
Era, pois, uma vez Luís de Camões…
Luís de Camões era galanteador, pelo
que também lhe acontecia poesia nesta área do humano viver. Eis, para provar
isto, uma sua história pitoresca, transcrita do referido manuscrito do século
XVI:
«Indo um dia Luís de Camões passeando por uma rua de Lisboa, viu a uma
janela duas Damas jogando as cartas. Parou ele defronte delas e da rua lhe
esteve dizendo algumas galanterias, de que elas não fizeram caso, antes
mostrando que nem davam fé de quem as dizia, e foram jogando por diante. Vendo
ele que aquele seu não dar fé era mais dissimulação do que inadvertência,
chegou-se mais ao pé da janela e lhe disse:
Tenha esse jogo já fim
Senhoras que
não jogueis mais
Porque
entendo que jogais
Para fazer
jogo de mim.
Se é certo
este meu juízo
Não é coisa
justa logo
Que estejais
fazendo jogo
De quem vos
ama de sizo.
Elas puseram os olhos nele, tornando-os
no mesmo instante a recolher, mordendo os beiços, disfarçando o riso. Uma que
de ambas era mais travessa deixou cair uma carta na rua. Levantou-as logo o
Camões, e viu que era um três de paus, e entendeu que aquilo era o mesmo que
lhe dizer que se fosse enforcar. Olhando para ela disse:
Por acabar
dias maus
Da triste
vida que passo
Mandai
Senhora o baraço
Que já cá
tenho três paus.
A isto não puderam elas dissimular o
riso, mas mortas dele se recolheram para dentro, e Camões deixando o posto
continuou seu passeio.».
Como se pode verificar, no século
XVI português podia existir um homem de talento fora dos beirais do Paço, dos
palácios dos nobres e da vigilância do Tribunal do Santo Ofício que, de gorro
de plumas na mão, como o imaginou o pintor José Malhoa, era alegre de seu
natural apesar das agruras da vida… Esse homem de génio foi Luís de Camões,
cujo verdadeiro romance biográfico se perdeu na escuridão do tempo que foi
passando, mas que este velho manuscrito nos recorda tal e qual, e que eu nesta
data tenho a honra de recordar, com toda a humildade possível …
Tenho a honra de vos lembrar Luís de
Camões, neste dia que dizem ser especialmente consagrado à Pátria, ao amor dos
filhos à terra mãe e sua cultura milenária… Este homem que uns dizem
desabusado, pobre soldado raso que regressou uma vez de Ceuta a «manqueja[r]
de
um olho», como ele mesmo dizia,
que depois foi soldado na Índia, sem sequer ter ganho, ao cabo de muitos anos,
o suficiente para pagar a viagem de retorno à Pátria… Tenho a honra de vos
recordar este homem que, segundo um dos seus primeiros biógrafos, quando
expirou nem um lençol tinha para lhe servir de mortalha ao corpo, mas que
estava destinado, com o seu poema épico Os Lusíadas, a elevar à suprema esperança
a fé na Pátria e no povo lusíada, apesar de todas as tempestades e medos tenebrosos
da História, e a ressoar por todos nós até ao horizonte da dignidade humana,
e apesar da dura crítica, a capacidade de nos erguer de novo…
«Não mais, Musa, não mais, que a lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Duma austera, apagada e vil tristeza.».
(Os
Lusíadas, X, 145)
2 comentários:
ANÓNIMOS - NÂO.
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